Ainda não encontrei na memória uma criança negra que tenha crescido com grande exposição na mídia para fazer paralelo – deixem nos comentários caso vocês lembrem de uma criança negra que tenha uma carreira em atividade desde cedo –, pensando nos desafios que envolvem um sucesso ainda tão jovem.
A ausência de profissionais negros em todas as áreas da mídia brasileira sempre ficou explícita. Durante muitos anos, as referências de mulheres negras na televisão foram Zezé Motta, Glória Maria, Zileide Silva, Taís Araújo, Elza Soares, Sandra de Sá, Margareth Menezes e Maju.
E, por mais que em seus trabalhos, cada uma em sua área, elas tenham chamado a atenção por serem excelentes no que se propõem a fazer, o fato de serem elas as poucas mulheres negras em visibilidade na televisão e na música brasileira permitiu que se destacassem o talento, a inteligência e o profissionalismo dessas mulheres.
Entretanto, algo estava mudando no empoderamento das milhões de crianças que acompanharam essas mulheres pela televisão, rádio, revistas e, como estamos falando dos anos 2000, também pela internet.
Na periferia de São Paulo, uma criança, negra, com 6 anos de idade, decidiu que era possível sonhar e viver o seu sonho, então disse “Mãe, quero cantar” e, ao contrário do que muitos pais fazem com as ideias de seus filhos com 6 anos, sua mãe decidiu sair do seu emprego e começou a trabalhar como empresária da pequena artista Soffia Gomes que logo viria a ser conhecida como MC Soffia ou Lady da Quebrada.
Nascida em São Paulo em 22 de fevereiro de 2004, MC Soffia foi conquistando seu espaço com seu posicionamento explícito em letras empoderadas, que abordam questões sociais como preconceito, racismo e machismo e ainda criança já estava inspirando meninas a amarem seus cabelos, seus traços físico e, mais do que tudo, amarem a cor de sua pele.
“Devolva minhas bonecas quero brincar com elas. Minhas bonecas pretas, o que fizeram com elas? Vou me divertir enquanto sou pequena. Barbie é legal, mas eu prefiro a Makena africana. Como história de griô, sou negra e tenho orgulho da minha cor.”
Letra da música ‘Menina Pretinha’ lançada em 2016.
Entretanto, o tempo passou, mas as letras de Soffia continuam a empoderar não só as crianças, como também as jovens mulheres que cresceram e se transformaram junto dela com o passar dos anos. “É maravilhoso elas falaram que cresceram comigo, o público falando: ‘Ah, eu sou mais velha que você, mas eu sou super fã’. Eu falo, é isso, é sobre isso.”
Não que os temas das canções e rimas de Mc Soffia sejam muito diferentes das que a levaram ao destaque, como a faixa “Menina Pretinha”. A cantora, apesar da consciência sobre os temas, ainda sim sabe como se manter em contato com os diferentes públicos que atingiu e vem conquistando. “Músicas minhas ainda tocam nas escolas, os professores ainda conseguem tocar como material didático. Ainda canto em escolas, nos Sescs e sempre vai bastante criança também, então a gente tem um setlist para o público adulto, para o público jovem, né? E tem também um setlist para as crianças.”
E, mesmo com as diferenças de idade e temas abordados em seu novo álbum ‘It Girl’, a artista afirmou em um tom bastante alegre: “Estou recebendo muito bem o feedback da galera, principalmente das pessoas que me apoiaram desde o início e que estão vendo esse meu crescimento”.
Ao contrário de muitos artistas na indústria da música, a carreira de MC Soffia foi desde o início gerenciada pela sua mãe que assumiu a função de empresária da artista, e por isso foi estudar Direito para dar suporte jurídico para a jovem artista. “Minha mãe é minha empresária desde pequenininha. Tipo, quando eu tinha 6 anos, eu falei, mãe, quero cantar. Ela saiu do emprego e foi trabalhar comigo. Então, depois disso eu comecei a falar, meu, é isso mesmo que eu quero, bora nessa luta.”
Se, para alguns artistas, as gaiolas de ouro (gravadoras) são objetos de desejo, para MC Soffia e sua equipe não. “A escolha de não entrar na gravadora é porque sempre gostei muito de ser livre. De não ter ninguém mandando fazer isso, mandando fazer aquilo ou dizendo: Não pode lançar essa música porque ela não é boa, sabe? Eu não quero transformar o meu sonho numa tristeza, numa coisa chata. Gosto muito de poder criar, de poder ir atrás do beats, de poder ir atrás da referência, sabe? Sempre trazendo o trabalho cada vez mais com a minha personalidade. Então, a gente optou por não entrar em uma gravadora.”
Se manter no mercado fonográfico tendo relevância e sucesso de forma independente não é nada fácil e, para isso, um artista precisa estar bem assessorado.
“A gente criou o nosso selo. Eu tenho uma empresa onde emprego outras pessoas, então, não entrar em uma gravadora não foi pelo caso de, tipo, não sei o que lá, não. É só pela liberdade… É mais difícil, né? Porque os processos são mais demorados, eu tô há 13 anos, e é isso.”
Seguindo no mesmo movimento, sua tia e sua avó também foram em busca de especialização na área da comunicação, oferecendo a Soffia assessoria de imprensa e assessoria comercial. “Minha avó trabalha comigo, minha tia trabalha comigo, é um trabalho todo familiar. E fico muito feliz por serem três mulheres pretas que me apoiam e que estão lutando para que meu sonho dê certo. E aí, a gente vai à luta, sabe?”
E, contrariando o que acontece na maioria das relações família-trabalho, a artista e sua família conseguem equilibrar bem as demandas de trabalho e momentos de diversão com a família. “Nós vamos pra balada, vamos viajar. Depois, na viagem, tem que fazer reunião, porque apareceu um show do nada, e assim vai… Minha mãe, inclusive, vai comigo. A gente não mistura não, sabe? A hora de trabalho, a hora da família.”
Em 2016, MC Soffia foi convidada para cantar na abertura da Olimpíada do Rio, marco importante em sua jornada – com apenas 14 anos, foi a primeira cantora brasileira preta indicada ao Bet Awards na categoria Artista Revelação Internacional e vencedora do prêmio CLAIFF 2023, na categoria Melhor Vídeo Musical, demonstrando seu talento precoce e impacto significativo na música.
Por isso, não nos surpreende quando Soffia conta sobre seus processos criativos para o lançamento do novo álbum “It Girl”, dividido em duas partes e a primeira faixa de trabalho, “Ref. Delas”.
“O clipe de ‘Ref. Delas’ foi assim, bem do nada. A gente gravou num fundo verde, e as ideias foram vindo depois. Então, todos os clipes são ideias minhas. Tudo que você for imaginar na minha carreira tem um pitaco meu. Então, nada é. A pessoa chegou, eu falei, maravilha, subiu. Não. As pessoas que a gente chamou pro público eram pessoas ’It Girls’. Não a pessoa padrão beleza. Não. É a galera toda tatuada, a galera que tem uma vibe mais street, uma vibe mais hippie, entendeu? Então, foi isso que a gente trouxe para o clipe. E ficou muito legal. Tá aí, ‘Ref. Delas’ bateu 100 mil já!”
As letras de MC Soffia são reflexo de sua vivência e das realidades que observa ao seu redor. Ela usa sua música como uma forma de protesto e de conscientização, incentivando a autoaceitação e a luta contra todas as formas de discriminação. Sua influência vai além da música, alcançando as redes sociais, onde ela compartilha mensagens de empoderamento e respeito às diferenças.
“A gente já tinha feito essa capa muitos anos atrás, mas sabia que precisa soltar num momento muito especial. Não dava pra soltar do nada no feed porque os Instagram tem seus problemas: cai do nada e tá com pouco engajamento. Então não dava pra simplesmente soltar essa capa assim, sozinha. Aí a gente segurou bastante e falou, bom, vamos lançar um álbum.”
“Eu tô querendo grana, eles atrás de fama. Quem vê close não vê corre, não se ilude, mana.
Acordo cedo, vim do gueto, você sabe bem. Tu tá indo, eu tô voltando, ninguém para o trem”.
Trecho da faixa “Ref. Delas” do álbum “It Girl” Parte 1.
MC Soffia tem conseguido impactar positivamente a vida de muitas pessoas, especialmente de jovens negras que se identificam com suas letras e encontram na sua música uma forma de se expressar e de se fortalecer. Seu legado é o de uma artista que não apenas canta, mas que também educa, conscientiza e inspira.
“A gente tá conquistando essa faixa de público. Precisamos trabalhar muito a estética e os shows, as músicas, até para a gente ir conseguindo conciliar.”
A primeira parte do álbum “It Girl” conta com várias participações especiais, com destaque para a cantora Urias que a cada dia vem se destacando mais no cenário pop nacional, E MC Soffia não poupa entusiasmo para falar sobre a amiga.
“A gente chamou pessoas de quem eu sempre gostei, sempre escutei, pessoas que nos fortalecem, porque o mundo da música é isso, cada um fortalecendo o outro. Aí chamei a Lua Thug que é uma mina do trap, chamei a Amabbi que também canta trap, que também tá na cena, buscando fortalecer as minas que estão vindo agora. Chamei a Urias que é uma ref muito grande pra mim, que tem um público maravilhoso. Ela é perfeita, It Girl! A gente fez a música ‘Chica Mala’, que ela entregou super. É uma das minhas músicas mais ouvidas do álbum. E vai vir parte 2 aí, fiquem atentos. Mas eu acho que a ideia era porque precisava, né? Treze anos, a gente precisava soltar um álbum na pista.”
Muitos artistas que começaram na indústria do entretenimento ainda criança, anos após o sucesso de seus projetos, reclamaram ter perdido algo irrecuperável: As fases da infância e os desafios da adolescência, mas, para Soffia não parece ter sido um problema. A maturidade para lidar com os sonhos e manter os pés no chão é quase tangível quando pergunto se, em algum momento de sua trajetória, sentia ter perdido alguma coisa por ter sido uma criança artista.
“Não, não perdi nada. Inclusive, aproveitei e degustei um pouco até mais, né? Consegui entrar em eventos, ganhava presentes, a minha carreira não atrapalhou em nada. Sempre deixava muito claro pra minha família que, por mais que eu seja cantora, quero poder brincar até o último momento, estudar até o último ano. E não perder essas fases que são fases da vida Tem muitas pessoas que tentam passar essas fases, e depois não tem como voltar e se entristecem lá na frente. Então, tudo que eu pude aproveitar, aproveitei. Tô aproveitando ainda, entende?”
É incrível como MC Soffia consegue ser carismática, talentosa, profissional e tantos outros adjetivos que poderíamos usar para descrevê-lá. Neste ano (2024), a cantora leva pela primeira vez um show para um dos palcos principais do Lollapalooza. E, sendo esta uma das maiores estruturas onde a cantora já se apresentou, eu estaria completamente nervoso, mas Soffia conta com tranquilidade e seriedade sobre sua rotina de ensaios e preparos para subir ao palco.
“Estou ensaiando todos os dias. É um ensaio intenso, entre 4 a 5 horas, tenho que cuidar da alimentação, cuidar da voz, cuidar do corpo. A gente sempre vai mudando, então vamos botar essa música, mudar as histórias, mudar a estética. A gente tá nessa loucura aí, mas vai dar tudo certo.”
E o que podemos esperar para essa apresentação?
“Podem esperar que seja um show onde vou trazer a história da minha vida, então a gente vai trazer muito do movimento hip-hop nesse show. Da dança, looks, estética, vai vir todo movimento hip-hop”.
Para não atrapalhar a correria da agenda de uma estrela da música, pergunto para a artista famosa por frequentar os melhores afters: o que não pode faltar em after para valer a pena ver o sol nascer? E Soffia não precisou pensar duas vezes para responder:
“Gente, música boa. Se não tem música boa, cancela. Tô indo embora. Não fico na festa mesmo. Antes mesmo do sol, se eu tô na festa e a música tá ruim, não tem como, porque eu não bebo. Então, já não bate nada. Eu preciso estar com alguma coisa batendo, que é o quê? O ritmo. O ritmo faz bater. Se a música tá ruim, nossa, eu tô bem pegando meu beco e indo embora. Agora, se a música tá boa, nossa, sobe o bêbado em cima da mesa e eu em cima da mesa junto com o bêbado”.
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